domingo, 31 de maio de 2009

Peter Greenaway e o cinema experimental

Peter Greenaway é um diretor notável e definitivamente fora do comum. Suas obras se mostram bem características uma vez que se começa a estudá-las.
Em meio a tanta tecnologia explorada pelo diretor, se encontra nele uma ambição de montar “pinturas em movimento”. A tentativa de simular cenários da pintura barroca está longe de ser sutil. A iluminação utilizada em seus filmes busca, principalmente, “imitar” aquele chiaro/scuro pesado e excessivo feito por Caravaggio e Veermer (este último especialmente retratado em “Zoo – Um z e dois zeros”) em seus quadros de sucesso. A questão de pesos visuais também fica bem explícita na hora em que Greenaway vai compor um cenário, contribuindo, assim, para a pluridimensionalidade das obras do diretor e sua idéia de convergência em suas obras. No barroco de Greenaway, os espaços produzidos são extremamente dinâmicos e em constante mutação, havendo, consequentemente, uma quebra no texto linear, em sua maioria através de encenações exageradas e coreografias meticulosas para compor o quadro a ser filmado. Os planos gerais e bem abertos contribuem sem sombra de dúvida para o acesso a essa silmutaneidade, a essa falta de foco da cena.
Peter Greenaway não busca retratar a realidade de forma alguma. Percebe-se claramente que a maioria dos filmes são produzidos em estúdios e que, muitas vezes, nos deparamos com planos teatrais e longos movimentos de câmera, os chamados travellings, pelas cenas. Dois grandes exemplos dessa característica do diretor são os filmes “Última tempestade”, no qual a própria homenagem foi retirada do teatro, já que se baseia em uma peça de William Shakespeare chamada “A tempestade”; e o filme “O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e seu amante”, onde a mudança de cenários (do banheiro para o restaurante, do restaurante para a cozinha, e assim por diante) se passa por um travelling muito característico, como se o travelling fosse o olhar do espectador que se encontra em um grande palco de teatro. O final de “O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e seu amante” também trata desse “tributo ao teatro”, uma vez que ao final do filme, quando o ladrão é morto por sua mulher, cortinas vermelhas se fecham como para mostrar que “o espetáculo terminou”.
O diretor também se importa com a formação de ambientes monocromáticos em suas obras. O filme mais caricato de tal característica é “O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e seu amante”. Contudo, em quase todos os seus filmes é possível captar tal marca do diretor. Em “Barriga de Arquiteto”, por exemplo, vemos um ambiente muito verde (causado pela luz do xerox) quando Kracklite começa a ficar obcecado com a própria barriga. O intuito do diretor ao usar mão desse recurso é causar uma sensação forte no espectador simplesmente ao olhar para a cena, o que para Kracklite é possível através da exploração da semiótica das cores. O verde, por exemplo, já foi usado com intuitos extremamente diferentes pelo diretor. A cor foi usada tanto para passar a sensação de “doença”, quando o arquiteto Kracklite de “Barriga de Arquiteto” xerocava incansavelmente fotos de diversas barrigas, quanto para representar fonte de vida e alimento, na caracterização da cozinha de “O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e seu amante”.
Sobre as narrativas de sua autoria, em uma ou outra obra é possível perceber uma certa “divisão em partes” que o diretor usa. Em “8 ½ mulheres”, essa divisão se dá pela localização (Genebra e Kyoto, principalmente). Já em “O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e seu amante”, a divisão é feita através da passagem dos dias e da troca de menus a cada dia. De certa forma, Greenaway explora mais uma vez a fragmentação do filme e da imagem com essa divisão, quebrando a linearidade da narrativa sempre que possível. A idéia é montar um “mosaico poético” de imagens em suas obras.
Para Greenaway, o que mais importa é a imagem, o pictórico, a forma. Em seus filmes, a música é mero acompanhamento da imagem. Ela não se destaca em momento nenhum, o que faz com que o diretor desenvolva um interesse maior nas músicas minimalistas, como as do compositor Wim Mertens, que participou da trilha sonora de “Barriga de Arquiteto”.
Por ter esse desejo pela fragmentação e pela simultaneidade, Greenaway monta seus filmes de modo que sempre ocorre uma ruptura com a linearidade, coisa que ele faz conscientemente, pois acredita que deve haver a fuga do que chama de “tiranias”. Para Greenaway, as tiranias no cinema são o que o fazem crer que o cinema nunca esteve “vivo”, frase bem conhecida na mídia. Dentre estas “tiranias” estão:
• Tirania do texto: não há necessidade de uma história, uma dramaturgia nos filmes. Peter crê que “a imagem é a última palavra”.
• Tirania do ator: o ator não é a figura central a ser exposta. Ela deve dividir a cena com outras evidências do mundo, como uma paisagem. Peter até brinca que “o cinema não é um playground para Sharon Stone”.
• Tirania das câmeras: Peter crê que a montagem no processo cinematográfico passa a ser o mais importante mediante tanta tecnologia no ramo. Ele diz que um bom montador pode gerar um filme com dramaturgia a partir do que ele quiser, deixando a fotografia do cinema e as próprias câmeras de lado.
Ainda com o foco nessa ruptura com a realidade e a linearidade, o diretor monta pequenas “janelas” na tela com diversas situações diferentes acontecendo ao mesmo tempo mediante a cena principal do quadro. A vontade do diretor ao montar seus filmes dessa maneira é instigar o espectador a criar a sua interpretação da obra como um todo.
Outra característica extremamente forte do diretor é a exploração do nu e das relações sexuais em suas obras. O erotismo está presente, com freqüência em cenas em que os atores aparecem completamente desnudos. Contudo, esse erotismo acaba por se mostrar algo natural, quase que animal, o que não provoca excitação ou qualquer desconforto ao espectador. Percebe-se que, em alguns filmes de Greenaway, ocorrem manifestações de fantasias sexuais diversas. Em “8 ½ mulheres”, as fantasias sexuais do mundo pós-moderno reinam na trama. Pai e filho planejando montar um “bordel particular”, em busca de poligamia e aventuras sexuais variadas como válvula de escape para a morte da esposa e mãe. Neste filme, as mulheres acabam sendo desvalorizadas e sujeitas à dominação do homem, enquanto que, em “Livro de Cabeceira”, a personagem Nagiko Kiohara controla quase todos os homens a sua volta, onde o pincel se torna símbolo do controle da relação, ou seja, aquele que é pintado é o possuído e não o possuidor.
Já em “Zoo – Um z e dois zeros” a relação sexual quase que se compara a uma zoomorfização, contendo cenas que se aproximam do bizarro, como, por exemplo, a parte em que uma empregada do zoológico onde se passa o filme se relaciona com zebras.
Em “O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e seu amante”, o nudismo toma duas faces ao longo da história. A primeira, presente já na primeira cena que mostra um homem nu sendo maltratado pelo ladrão Spica, explora a impotência do ser humano e também a sua proximidade com um animal qualquer. Já a segunda trata da relação sexual, que ocorre, principalmente, na cozinha. Essa escolha de ambientação, em meio ao fornecimento de alimentos, permite relacionar as cenas com a celebração e perpetuação da vida, sendo este um ponto de vista até que otimista do diretor.
Peter Greenaway também não mede esforços para gerar situações grotescas e violentas ao longo de seu trabalho. O intuito nessa marca em seus filmes é, basicamente, mostrar como o mundo, apesar de tantas coisas belas, também tem sua parte podre, feia e cruel e ainda assim fascinante por certas perspectivas.
Em “A última tempestade”, quando a mulher de Prospero abre sua barriga, durante a explicação sobre livro da anatomia, vê-se que a intenção do diretor é mostrar o ventre da mãe, de onde vem a vida, mesmo que não seja uma visão agradável. Em “Zoo – Um z e dois zeros”, a marcação do tempo se dá através da imagem de animais apodrecendo, coisa que é natural, faz parte do nosso mundo.
Tal violência, choque e podridão das imagens também se reflete na personalidade dos personagens de Greenaway. Percebe-se, após assistir a mais de uma obra, que os componentes sádicos das relações humanas são temas que interessam muito o diretor. Um exemplo disso seria a relação que o arquiteto Kracklite desenvolve com sua mulher, o amante que ela conheceu na Itália e a irmã deste. A traição da mulher é justificada pelo desdém do marido. A traição do marido com a irmã do amante é um ato mesquinho de vingança. A arrogância e ambição do amante em obter tudo de Kracklite e a manipulação da irmã para ajudar o irmão são mais indícios do que Greenaway pretende mostrar sobre a natureza humana: não existe pureza ou bondade em ninguém, e as relações humanas podem ser extremamente falhas. Quem disse que o melhor para a esposa não foi ter traído o marido? E o oposto? É exatamente isso que Greenaway procura: levar o espectador a refletir intensamente sobre o certo e o errado nos paradigmas do relacionamento impostos pela sociedade.
A temática do diretor também se mostra bem singular, sendo que grande maioria dos roteiros de seus filmes foram produzidos pelo próprio. A adaptação da peça de Shakespeare feita para o filme “Última Tempestade” mostra como Greenaway busca a fragmentação e o acronológico, uma vez que ele desvia o enredo original de sua sequência e aproveita diversas passagens do texto para se focar em criar um “mosaico poético” com a história.
Ocorrem também nos filmes de Greenaway demasiadas homenagens tanto a artistas como a formas de arte. Como exemplo temos filmes, como “8 ½ mulheres”, onde pai e filho em suas conversas citam Mondrian, Jane Austen, dentre outros; em “Barriga de Arquiteto” a arquitetura e a fotografia merecem destaque; em “O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e seu amante” ocorre a valorização da gastronomia; em “Livro de Cabeceira”, a caligrafia oriental e a literatura são os realces do filme. Há ainda muitos outros exemplos, em praticamente todos os filmes por ele realizados.
Os roteiros de Greenaway sempre apresentam diálogos que instigam a reflexão e a interpretação lírica. Um exemplo muito forte é o diálogo presente em “O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e seu amante”, quando o cozinheiro Richard conta a Georgina por que decidiu virar cozinheiro. Ele disse que desejava vender ao público o que eles mais desejavam, e que, dentre estes, os pratos mais caros eram os pratos escuros, pois ele se via vendendo a morte. Basta uma discussão assim para impactar um espectador determinado a refletir em cima do tema proposto. A ampliação de perspectivas e a geração de crises “existenciais” são mera consequência de um roteiro bem trabalhado.
Ao conhecer mais afundo Greenaway, vê-se que a necessidade de repertório elevado é indispensável para se interpretar suas obras. Quem nunca viu um quadro de Veermer ou de Caravaggio não vai compreender completamente o porquê da composição dos planos de Greenaway. Quem nunca ouviu falar de Mondrian dificilmente verá sentido na discussão presente em “8 ½ mulheres”. Quem nunca leu Shakespeare não vai conseguir criar uma opinião em cima da adaptação feita em “Última Tempestade”.
Em meio a tanta singularidade, não cabe a ninguém definir um significado universal para as obras desse diretor único. O número de caminhos possíveis para se chegar a uma conclusão é apenas tão grande quanto o número de espectadores das obras.

Nenhum comentário:

Postar um comentário